Prevenção Quaternária: Dezembro Cor de Burro Fugido

1. Introdução

Depois do “sucesso” das campanhas Outubro Rosa, Novembro Azul e Black Friday, chegou o Dezembro Cor de Burro Fugido. Um mês dedicado às ações preventivas que lhe protejam de intervenções médicas desnecessárias e afeito às incertezas.

1.1. Incerteza

Sim! Gostamos de discutir com você a incerteza, ela faz parte de todas as nossas decisões. Sem ela, não teríamos nada para decidir. Você, como difusor e já integrante da nossa campanha, precisa entender a escolha da nossa cor. Na definição da cor já residem nossos pilares.

  1. Discussão da incerteza

  2. Fuga e proteção através conscientização

Afinal, ninguém consegue definir com clareza o que é uma “cor de burro fugido”, não é mesmo? Esta é uma expressão usada justamente para se referir àquela cor que não se define. Ou seja, é incerto mas vamos discutir.

Ao mesmo tempo, vamos mais a fundo na expressão: o que se diz é que ela foi corrompida ao longo do tempo. O original seria: “Corro de burro fugido”. O que significa que é melhor nos protegermos e correr de um burro quando ele foge pelo risco do animal nos dar um coice ou nos agredir pelo medo.

Nunca um nome de campanha foi tão apropriado. A sociedade, a mídia, profissionais de saúde e pacientes têm agido pelo medo, não toleramos a incerteza e, pior, não discutimos. Sem discussão e compartilhamento, não há proteção e estaremos então sofrendo intervenções médicas desnecessárias.

Assim como a expressão que nomeia a campanha, corrompemos princípios originais da ciência e dados reais de estudos. Movidos pela boa intenção de abafar o medo ou pela nossa inabilidade social de simplesmente aceitar a incerteza, nos deixamos levar.

Este não é um texto conspiratório para confrontar interesses econômicos, apenas quero que você leitor tire suas próprias conclusões. Para tal vou lhe fornecer dados e resultados da ciência que não estão sendo contados para você ( 😳 ).

1.2. Prevenção Quaternária

Tudo o que estamos falando relaciona-se com sobrediagnóstico, sobretratamento, medicalização da vida.

E esta não é um discussão nova. Qualquer médico desde os primeiros dias na faculdade já foi exposto ao princípio hipocrático: “Primun Non Nocere”. Do latim – Primeiro, não cause dano. Embora bonito, poucos sabem como de fato fazer isso. A maior parte dos profissionais sequer sabe ou reconhecem que determinadas ações são sobrediagnóstico ou sobretratamento. O dano decorrente disso, frequentemente não é reconhecido, não é contabilizado ou é deliberadamente ignorado.

Frases e crenças limitantes do tipo: “melhor prevenir que remediar” ou “não é possível que com todo o avanço da ciência, em pleno século XXI não tenha sido ainda inventado algo” perpetuam essa forma de fazer saúde.

A visão de uma ciência infalível somada com uma dose de intolerância à incerteza nos colocam dentro deste universo de medicalização da vida. Viramos produtos inseguros e que para tudo espera-se ou vende-se uma resposta médica sem a qual não é mais possível viver. Desde legislações sem sentido à um mínimo tônico capilar, esperamos tudo menos aceitar a ausência de resposta. Não há um culpado. Estamos todos inseridos nessa realidade. Somos, ao mesmo tempo, agentes, vítimas e consequência desta medicalização da vida.

Veja esta figura que exemplifica os vários fatores para este cenário de sobrediagnóstico e medicalização da vida e como nos inserimos dentro dele:

2. Conceitos

Pensando em todo este contexto, nossa campanha precisa lhe ensinar alguns conceitos.

2.1. Rastreamento

O primeiro deles seria o conceito de Rastreamento. Afinal, as duas campanhas anteriores (Outubro rosa e Novembro azul) difundem sobre o rastreamento de testes em pessoas saudáveis.

Mas afinal o que é rastreamento? Uso de algum teste em pessoas previamente SAUDÁVEIS para uma determinada condição com a finalidade de redução de desfechos primários sem causar danos às pessoas simplesmente pela introdução do teste.

Na década de 60 começou a se discutir sobre benefícios de rastreamentos, ou seja, fazer testes em pessoas sem sintomas. Ainda nesta mesma época, foram definidos alguns princípios, a saber (Geoffrey Rose, 2010):

  • Não deve haver rastreamentos sem recursos adequados para o aconselhamento e o cuidado a longo prazo

  • O rastreamento e o cuidado seletivo têm maior custo-efetividade do que o rastreamento em massa

  • O propósito é avaliar o risco reversível – não os fatores de risco

Assim como alguns critérios que devem ser cumpridos para a implantação de programas de rastreamento (Wilson e Jungner):

  1. A doença deve representar um importante problema de saúde pública que seja relevante para a população, levando em consideração os conceitos de magnitude, transcendência e vulnerabilidade

  2. A história natural da doença ou do problema clínico deve ser bem conhecida;

  3. Deve existir estágio pré-clínico (assintomático) bem definido, durante o qual a doença possa ser diagnosticada;

  4. O benefício da detecção e do tratamento precoce com o rastreamento deve ser maior do que se a condição fosse tratada no momento habitual de diagnóstico;

  5. Os exames que detectam a condição clínica no estágio assintomático devem estar disponíveis, aceitáveis e confiáveis;

  6. O custo do rastreamento e tratamento de uma condição clínica deve ser razoável e compatível com o orçamento destinado ao sistema de saúde como um todo;

  7. O rastreamento deve ser um processo contínuo e sistemático

  8. A adesão ao programa deve ser voluntária e entendida como direito dos cidadão e o participante deve receber orientação quanto ao significado, riscos e benefícios do rastreamento, bem como sobre as peculiaridades e rotinas do programa e dos procedimentos

2.2. Rastreamentos Oncológicos

E ai, eu te pergunto: Por que então não fazermos um rastreio de algo tão ruim como um câncer? Por que não fazermos um teste quando as pessoas estão saudáveis para evitar que elas morram daquele câncer?

A ideia parece promissora, se tivesse dado certo. Dado certo? Mas deu certo, não? Não, não deu. Veja estes gráficos que mostram o aumento do número de diagnósticos ao longo das décadas e as taxas estáveis de mortalidade para aquele câncer.

Ou seja, como você pode ver, os rastreios em massa uma vez instituídos aumentaram os diagnósticos mas a mortalidade pelo câncer, manteve-se estável ao longo dos anos.

Mas e então o que aconteceu com as pessoas novas que foram diagnosticadas? Sendo direto: a maior parte falso positivos ou lesões lentas e não progressivas. Pequena parte apenas se deve àqueles que de fato tiveram a vida salva pelo rastreio.

Assim nasce o dano, pois pessoas saudáveis estão sendo submetidas a exames e tratamentos que não precisariam. E é onde mora a incerteza, afinal, eu não sei quem são ou quem tem tal tipo de lesão lenta. Por isso, vamos a mais uma rodada de conceitos: A Natureza e velocidade de lesões malignas.

2.3. Tempo de permanência

Câncer não é uma entidade universal que representa todo o mal da sociedade. Nem todo câncer é igual ou cresce igual. É um nome que representa uma atividade e alteração celular de crescimento desordenado.

Acompanhe então o raciocínio: da alteração celular para um crescimento, surgimento de sintomas e até a morte por um câncer existem vários fatores.O crescimento e sua evolução ao longo do tempo é variada. Desta forma, assim como não teremos respostas ou opções curativas na medicina atual para cânceres e tumores de crescimento rápido e invasivo, não sabemos quem vai ter lesões de crescimento lento ou não progressivas que não precisariam de qualquer intervenção.

Para entender melhor, veja o GIF abaixo e acompanhe a descrição.

Imagine que ali está uma determinada população de pessoas que terão ao longo da vida um Câncer X, e que conseguimos ver quando surge uma alteração celular e sua progressão até os sintomas de um câncer. Um câncer de progressão rápida são as setas curtas, e os de progressão lenta, as setas longas.

Num determinado tempo, um programa de rastreio é instituído e temos 2 diagnósticos. Percebam que o rastreio já não conseguiu pegar 2 indivíduos de lesões agressivas e rápidas. O programa continua e no próximo ano temos mais novos 4 diagnósticos e ainda assim mais 4 indivíduos não foram “pegos” pelo rastreio.

Este é o motivo pelo qual a mortalidade mesmo com a introdução de um rastreio não mudou. O que nos resta então seria entender os 6 indivíduos de progressão lenta. Algum pode de fato ter se beneficiado com o rastreio mas a maioria foi encontrado como uma lesão pré-maligna, que não lhe traria problemas, e quando apresentasse sintomas seria possível tratamento da mesma forma. Sei que é difícil aceitar isso, a esta dificuldade chamamos de intolerância à incerteza.

Até o exemplo acima é meramente didático. A incerteza populacional é gigantesca e o número de pessoas, se falarmos de um rastreio em massa, torna-se cada vez maior, com diagnósticos desnecessários e por sua vez tratamentos também desnecessários. E mais, se é um programa de rastreio regular, eles tornam-se cumulativos.

2.4. Mortalidade Geral e Específica

Mais uma vez vejam a figura abaixo. Percebam que, ao olharmos a mortalidade específica de um câncer, temos reduções relativas mas ao olharmos para a mortalidade geral, uma vez que os rastreios são populacionais, eles são apenas a pontinha do iceberg, portanto sem impacto geral na mortalidade.

Os testes de rastreio de câncer em massa reduzem as TAXAS RELATIVAS de mortalidade por um câncer específico, mas continuam SEM IMPACTO na mortalidade geral absoluta da população rastreada

Você já viu que os casos que provavelmente estão morrendo são aqueles que possuem lesões mais agressivas em que o rastreio não é capaz de ajudar. Estamos gerando uma massa de pessoas curadas de um câncer que provavelmente não lhe fariam mal ou que demoraria muito tempo para se manifestar e mesmo manifesto teríamos tempo hábil para tratar.

2.5. Paradoxo da Popularidade

Esse é um paradoxo no mínimo interessante: Quanto mais sobreviventes um rastreio em massa gera, mais benéfico e útil ele será visto pela sociedade. A questão é que são sobreviventes de algo que não lhes faria mal.

3. Conclusão

E aí? E agora?

Seja bem-vindo ao “Dezembro Cor de Burro Fugido”.

  • Toda vez que for pedir um teste de rastreio, faça um aconselhamento e uma decisão compartilhada para que pessoa decida qual caminho seguir. Lembrando que não rastrear também é uma opção e uma opção segura.
  • A discussão é então baseada na incerteza e naquilo que a pessoa valoriza. De um lado, a possibilidade de intervenções médicas desnecessárias possivelmente danosas e, de outro, a aceitação de que quando surgirem lesões você estará em tempo hábil de tratamento.
  • Não é o profissional quem decide isso, muito menos sem discutir o que está em jogo.
  • Difunda as evidências de forma clara dentro da realidade e do seu contexto, considerando os valores e preferências das pessoas, compartilhando saberes, danos e benefícios e suas incertezas inerentes.
  • Viva a sua vida, aceite a incerteza, informe-se, fuja, proteja-se, compartilhe.

4. Referências

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