A Menina de Moletom em uma tarde de novembro

Me dei conta de que já chegavam as 16h. A tarde se apresentava como era: um típico fim de dia de novembro. O calor anunciava a chuva que não falharia até o fim da consulta. No papel pardo em cima da mesa, o mais familiar era a longa listra amarela. Procurava na memória e não encontrava um rosto para aquele nome. Entre as poucas folhas no interior, nada mais do que dores de garganta e cólicas menstruais. 

Enquanto dobrava a manga do jaleco, percebia o suor que o fim do dia acumulara. Caminhei até a porta e ecoei pelo corredor o nome desconhecido. Vi se levantar uma menina. Ela ajudava a avó que caminhava com dificuldade. O tal nome agora tinha rosto e dona. Era da neta da Dona Maria. Elas moravam não muito longe, logo ali no meio do território designado à equipe que eu já compunha há alguns meses. 

Ela me cumprimentou com um sorriso tímido e entrou no consultório, afastando a cadeira da mesa ao sentar. 

– Então,  Nathália, o que te trouxe aqui hoje? 

– Eu… eu nem queria vir, mas minha vó insis… – ela dizia antes de ser interrompida pela avó. 

– Sabe o que é, Doutora, ela anda muito desanimada, só dorme o dia inteiro. Eu fico preocupada de ser o ferro, igual aconteceu comigo aquela vez, sabe?

A menina se encolhia na cadeira. Parecia ainda mais desconfortável do que a sua calça jeans e o seu moletom, em uma tarde de novembro, permitiam supor. Quando começou? Isso tem piorado com o tempo? O que você faz que melhora? 

Ela, que estreava os seus 15 anos, esboçava um sorriso ao dizer que estava bem e articulava alguns breves argumentos para justificar a preocupação da avó. Podia ser o jeito dela mesmo, podia ser cansaço com a escola, podia ser excesso de zelo. Mas, enquanto ela puxava a manga do moletom em direção à mão em gestos rápidos, nenhuma dessas hipóteses me convencia.  

Fraqueza? Dor de cabeça? Tosse? Tontura?  A cada “Não, nada” da menina cabisbaixa eu me sentia mais impotente naquela consulta.  Se alimentava bem, não tinha outras queixas desde que Ibuprofeno aliviava suas cólicas. 

Tento, em um segundo momento, entender um pouco mais sobre o caso na ausência da avó.  O que eu consegui foi olhar de relance para a rotina da menina, em um comentário sobre as tarefas domésticas. A mãe e a irmã mais velha trabalhavam o dia todo, então ela e a irmã do meio faziam o almoço e vinham gastando cada vez mais tempo limpando a casa – “A minha vó não tá dando conta, cê sabe né doutora”. Eu sabia das dificuldades progressivas da Dona Maria, mas não estava convencida de que ali estava o problema. 

Quando pergunto sobre a escola, ela relata que sempre foi boa aluna, mas que no ano passado, no 8º ano, tudo ficou muito mais difícil. Apesar de sentir mais abertura, quando questionei sobre tais dificuldades, não consegui muito mais do que respostas esquivas que me afastavam de entender o que realmente estava acontecendo. Perguntei se ela gostaria de conversar mais sobre isso em outro momento sem a avó e ela acenou que sim com a cabeça. Enquanto a chuva começava lá fora, marquei um retorno com medo de não encontrá-la de novo. 

Chegou, então, a quinta feira seguinte, quando me lembrei com expectativa do retorno marcado. Procurei pelo corredor nas duas consultas anteriores e não a encontrei. Então, às 16h, chamei seu nome uma vez. Ela não atendeu. Na segunda vez, ela apareceu apressada no fim do corredor. Usava o mesmo moletom e a mesma calça jeans, a despeito do suor que precipitava em sua testa.

Sozinha, ela parece mais aberta. Disse que não queria preocupar a avó, mas que às vezes sim, se sentia triste. Eu tentava entender melhor a origem do sentimento, mas ela se tornava novamente arredia quando falava sobre a família. Voltei para o que ela parecia mais confortável em sua fala: a escola. Em alguns minutos, ela comentava que gostava de estudar, mas não tinha muitos amigos e, por vezes, se sentia sozinha. 

Com cuidado, retomei o assunto familiar. De frente a uma folha branca, sugeri que, juntas, criássemos uma representação da família. Entre círculos e quadrados, o genograma em construção marcava o papel, desemaranhando a história na minha mente. Lá do alto, a avó materna e o avô paterno davam origem a uma longa linha de tios e tias. Nela, estavam também o pai, em seu terceiro casamento, e a mãe, ainda solteira. Ao seu lado, estavam os irmãos: Laura de 19 anos, Bernardo de 18 e Júlia de 16. 

Enquanto ela se aproximava para acrescentar um a um os familiares, a manga do moletom, repuxada na extremidade da mesa, revelava longas linhas no punho. Avermelhadas ou esbranquiçadas, aquelas linhas, que pareciam seguir caminho pelo antebraço, me apontavam um sofrimento latente. Enquanto isso, com um lápis cor de rosa, ela marcava o conflito com o pai, em contraste à proximidade com a madrasta. Reforçava a boa relação com a avó e com a irmã de idade mais próxima, Júlia. Relatava ainda, não ser tão próxima da mãe e de Laura no dia a dia. 

Por último, ela desenhava vagarosamente uma linha dupla até Bernardo. A despeito de esforços intensos para contê-la, a emoção se espalhava pela sala enquanto ela se afastava por alguns segundos da folha, e voltava para cortar o quadrado acima do nome. Há 2 anos, em um acidente de carro, Bernardo havia falecido. Entre lágrimas enxugadas na manga do moletom, ela contou que insistira em trocar de lugar com o irmão no carro e ele foi o único que se feriu no acidente. 

A fala, outrora tão contida, agora era de palavras atropeladas. Como quem por muito guardou o que dizer, ela me contava da trágica perda do irmão. Falava de um sofrimento intenso, de difícil elaboração. Ela mostrou alguns poucos cortes, envergonhada. Em meio a uma ingenuidade cheia de cicatrizes, a dor era um chamado à realidade. Lembrava de que ela ainda estava aqui. Substituia, ainda que por alguns instantes, a dor lancinante da perda. Da falta. De se sentir responsável pelo que agora era irremediável. 

O irmão deixou, para além das boas memórias, desamparo. Sinto que tudo o que eu pudesse dizer e fazer era pouco. Mas eu digo e faço. Encaminho. Oriento. Estou à disposição. Contemplo, então, o sofrimento por alguns momentos. Aguardo com outro tipo de ansiedade o retorno, às 16h de uma outra quinta-feira. 

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