Elas que dividem a idade, a cidade, a rua.
Recomendamos a leitura acompanhada da música:
A Ordem Natural das Coisas – Emicida (feat. MC Tha)
https://www.youtube.com/watch?v=4cXOAqWOIcM
No início da rua com nome de artista, o choro ecoa pelo corredor. Laura aperta os olhos e por alguns segundos contempla a possibilidade de que a filha, com seus incompletos 5 anos, volte a dormir sozinha. Levanta com custo e acha graça da sua própria esperança. Na mesa da sala repousam pastas com alguns processos que aguardam o cessar do choro, o arrumar da casa, o reencantar do Direito. Ela se olha de relance na porta de vidro e pensa em como imaginou que sua vida seria diferente no auge dos seus 25 anos.
No final da rua com nome de artista, o choro ecoa pela casa. Amanda desperta bruscamente e, antes que se dê por consciente, posiciona com agilidade o bebê ao seu seio. Sorri de canto de boca: não acordaram. Os outros quatro filhos ainda se aconchegam calmamente em cada canto da cama. Em gestos treinados, se levanta e adianta o café nos minutos de tranquilidade que já já acabam. Com o bebê no colo, vê seu reflexo no espelho do banheiro. 25 anos. Então, vê se aproximar por trás, preguiçosamente, a filha de 9, anunciando o fim dos breves minutos de silêncio da manhã.
A alguns quilômetros dali, me levanto com dificuldade depois de um número exagerado de despertadores perdidos. Me permito tomar uma xícara de café com calma e me visto com a rapidez de quem, odiando atrasos, se vê sempre atrasada. Passo um traço de maquiagem tentando esconder o cansaço que o blefaroespamo entrega. O peso do fim do semestre me domina como o peso dos livros que equilibro com frágil habilidade no ônibus cheio.
Chego ao Centro de Saúde repassando alguns conceitos na mente. Entre Método Clínico Centrado na Pessoa, habilidades de comunicação e decisões compartilhadas, cabe um tanto de ansiedade entre aqueles que, de teoria à prática, ainda engatinham na Medicina. Com roteiro em mãos e sentidos em treinamento, vou com um colega e uma ACS à rua com nome de artista. Ela adverte: “Tem certeza que vocês querem ir lá? Cês sabem… a ocupação é complicada. Ela é uma paciente difícil, não dá abertura.”.
Já há alguns meses no Centro de Saúde, nós ouvimos muito sobre o local. Pequenas ruelas estreitas, grandes escadarias sinuosas, uma sensação de abafamento do ar que não circulava, o chão de terra, o córrego de esgoto à porta dos barracos, de relance em cima das lajes ou nas esquinas jovens com um radinho e um olhar inquisidor nos cumprimentavam educadamente, após ver que éramos acompanhadas pela ACS, mas sem nos deixar esquecer da forte presença de um poder paralelo naquele local, havia um estranhamento mútuo naquele encontro.
Batemos na porta de madeira e, entre vozes de crianças, fomos recebidos pelo olhar desconfiado de Amanda. No quintal, os filhos faziam do que estivesse à mão, brinquedo, do que fosse imaginável, brincadeira. “Eu sei que a vacina do mais novo tá atrasada, assim que der eu vou lá no posto, é que tá difícil de organizar…”. Entre conversas sobre a saúde das crianças e a contracepção, encontrávamos a resistência previamente anunciada.
Os meus pensamentos percorriam curvas bruscas entre a miséria, o ciclo menstrual e a próxima pergunta que o roteiro impunha. Dividindo angústias com a minha dupla em olhares discretos, colocamos nossas folhas de lado. Ali no sofá, entre tanto que nos separava, éramos jovens. E, conversando com ela como jovens, conseguimos conhecer mais sobre Amanda, além da paciente difícil, além da realidade desafiadora.
Nos despedimos com orientações e ainda com nossos jalecos brancos e apenas ligeiramente amassados. Nos equilibramos na descida íngreme até o asfalto. De volta ao Centro de Saúde, discutimos o caso que acompanhamos e ouvimos tantos outros. Viamos, com vividez, a realidade se impondo a despeito do nosso frágil conhecimento.
De carona ao ir embora, fui guiando o caminho que eu bem conhecia – “passando ali da ocupação, sabe?”. Logo depois das casas improvisadas, vinham as de alvenaria, que se aproximavam no espaço e aumentavam de tamanho até darem espaço a prédios progressivamente mais altos.
Lá no início da rua vejo meu destino. Subo o elevador e deixo meu sapato à porta. Alcanço minha sobrinha que desenha algumas flores no chão bagunçado do seu quarto. Laura estranha a barra da minha calça suja de terra e pergunta do dia. Minha irmã que acompanha de perto meu percurso na Medicina, escuta com olhos marejados o relato breve da visita.
Volto para casa com a cabeça cheia e livros pesados. Tanto quanto cabe entre a teoria e o que os nossos sentidos tocam, quanto cabe em poucos metros? Quanto cabe em poucos quilômetros? Em meio a perguntas sem resposta, elas – que são tão diferentemente recebidas pela idade, pela cidade, pela rua – ainda seguem. Repousam, então, Lauras e Amandas em ruas com nomes de artistas.
(Relato de reflexões – 3º período)
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