Visita domiciliar: um exemplo vívido sobre o trabalho do Médico de Família

Quais desses estágios previsíveis do ciclo de vida você já atendeu: Casal gestante, Casal se divorciando após o nascimento do 1º filho, pessoas com dificuldades com seus filhos adolescentes, adultos sofrendo com a saída dos filhos do lar e/ou pessoas lidando com a terminalidade da vida?

Mesmo sem conhecê-los, leitores, posso afirmar que, dentre todos esses ciclos de vida previsíveis que enumerei, o único que certamente você se deparará é o último e, justamente por isso, posso afirmar que todos os profissionais de saúde devem estar preparados para lidar com essa fase da Vida.

Contudo sabemos que a graduação e muitas vezes até a própria pós-graduação negligencia a formação das competências necessárias para se lidar de forma adequada com esse momento.

Nesse sentido, pergunto: Por que frequentemente negligenciamos o Obvio?

Pergunta complexa exige uma resposta no mesmo nível de complexidade e, por isso nós inauguramos o Blog abordando essa espinhosa questão que é a urgente necessidade de mudança do PARADIGMA que rege o cuidado em saúde deixando de priorizar a DOENÇA e valorizando mais a PESSOA que possui a moléstia (Clique aqui para ler também esse primeiro post)

Mas como profissionais de saúde do século XXI, temos, em geral, uma formação embasada em um modelo ficcional no qual nós, os profissionais, teríamos as curas para as doenças. Esse modelo, apesar de seu valor, dificulta, contudo, que as pessoas assumam seu protagonismo no processo de cuidado o que inclui necessariamente o planejamento de sua morte.

Sobre isso, nós últimos 3 anos, tive a grata experiência de atuar como docente do curso de medicina da UFMG, nesse período sempre acompanhado de no mínimo 10 alunos, que em média tinham por volta dos seus 20 anos. Juntos exploramos a APS do município de BH e suas ricas histórias. E é uma dessas histórias que gostaria de contar para vocês, como exemplo do trabalho do Médico de Família e Comunidade: Antes de conhecermos nossa querida “Dona Maria” pessoalmente, conhecemos seu prontuário e achamos várias anotações, algumas das quais já mostravam que a paciente agora diabética já tinha em 1989 detecções do níveis glicêmicos muito elevados. Para adequação temporal, esclareço que em 89 eu tinha apenas 5 anos e a maioria dos meus alunos ainda não eram nem nascidos.

Contudo nosso foco na visita não era a doença, mas sim a história da paciente. E aquela anotações por si só não traduziam o que veríamos em nossas visitas domiciliares.

Em visita domiciliares, conhecemos então “Dona Maria”, mulher metonímica da sociedade brasileira: Matriarca negra semianalfabeta e portadora de doenças crônicas degenerativas (Diabetes Mellitus tipo 2 ). Foram 5 períodos com 4 turmas diferentes visitando o Lar dessa senhora e conhecendo sua incrível trajetória.

Um dos nossos objetivo era estabelecer vínculo para sequencialmente construir Genograma e Ecomapa, instrumentos de abordagem familiar, que compunham os objetivos pedagógicos da disciplina. Confesso que senti-me um vitorioso, enquanto professor, por conseguir concluir esse objetivo pedagógico, já que a condição da paciente era muito mais grave que o esperado.

Para dar essa dimensão, a forte imagem abaixo essa era apenas uma das feridas que a paciente possuía:

Compreendida a gravidade, percebemos a necessidade de construir, enfim, um plano terapêutico próprio, singular, para Dona Maria. Uma das primeiras estratégias usadas foi a organização da caixa de medicações de Dona Maria:

Mas precisaríamos do conhecimento e do apoio de outros profissionais e por isso realizamos uma grande ação em parceria com a equipe do NASF, envolvendo os alunos e os familiares. Inicialmente, a mobilização do coletivo de profissionais nos deu grande satisfação. Contudo, essa satisfação momentânea converteu-se em frustração, pois a melhoria prevista nos desfechos secundários, ou seja, na melhora da taxa glicêmica, não se concluiu. Pelo contrário, a glicemia e sobretudo as feridas se agravaram ainda mais, a ponto de infectar e ameaçar a vida de “Dona Maria” e motivar várias internações nesse período.

E ali, mergulhado nessa difícil experiência de cuidar e ensinar, eu consegui perceber que já era momento de abordarmos a terminalidade, já que “Dona Maria” continuava pré contemplativa na mudança de alguns hábitos que contribuíam significativamente para o quadro atual.

E foi assim que intensificamos a busca pela compreensão dos seus Sentimentos, suas Idéias, as Funções que ela sempre realizou para si e para a família e as Expectativas existentes que ainda poderiam ser concretizadas. Essa abordagem à terminalidade segue os mesmos princípios ensinados pelo Método Clínico Centrado na Pessoa (MCCP) e a partir dela descobrimos que Dona Maria não desejava novas amputações mesmo que isso ameaçasse sua vida e compreendemos o seu medo em relação a algumas filhas mais vulneráveis que muita necessitavam dela.

Essas coisas, que nunca tinham sido abordadas, foram, enfim, o óbvio: aceitar a terminalidade como parte previsível da Vida e permitir que a Pessoa se expresse durante o encontro de saúde. Usando o MCCP, conseguimos garantir que seu desejo fosse realizado e até seus últimos dias: Ela cuidou de seu quintal (sempre reclamando do pé de amora que o sujava muito), da casa e das quatro gerações de pessoas que lá viviam, sempre com sorriso no rosto e uma capacidade de se doar para o outro de forma integral e verdadeira, o que para sempre ficará comigo como lição de amor verdadeiro.

Ontem, dia 5 de Dezembro, comemorou-se o dia do Médico de Família e Comunidade, um especialista que não permite que o Óbvio seja negligenciado. E é assim que vamos revolucionando o processo de cuidar, dia a pós dia.

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